Daqui, a desesperança

 

Foto: Mary Lafer
A Antonio Candido, reflexões sobre direitos à vida e à arte.


 

Caro mestre, seguimos na luta.

Desesperançados, ao contrário do que você supôs em 1988, ano do renascimento das esperanças. Daqui, de 2021, a realidade é tão oposta e monstruosa que você não acreditaria neste retrocesso. Nem nós, para falar a verdade. Lá no ano da promulgação da Constituição, você imaginou que, apesar do trágico cenário de um Brasil recém-saído da ditadura, os anos vindouros seriam melhores; que haveria motivos para lutar; que as desigualdades estariam menos desiguais e as injustiças sociais, menos injustas. Nada, mestre. Estamos cada vez mais distantes disso.

Todos os dias, leio as notícias sobre o seu João, que não consegue mais o sustento para a família e está desesperado. Ou sobre a dona Ana, que morreu à espera de uma UTI para Covid (pois é, para piorar o nosso percurso, estamos sangrando diariamente em uma pandemia longe, bem longe de ser controlada) porque não tinha dinheiro para pagar um hospital. Não tinha dinheiro, mas deveria ter direito. Também não tem.

Esbarro, nas redes sociais, com pedidos de doação para mães e pais cujos filhos passam fome ou estão doentes e morrendo à míngua. Eles pedem PIX. Sabe o que é PIX? É uma transação instantânea, feita por meio do celular, para transferência de dinheiro. É a mendicância virtualizada. E não falo isso em tom crítico, não. Falo em tom de desespero porque me sinto de pés e mãos atados quando vejo algo assim. Embrulha o estômago e faz o sangue ferver. Uns com tanto e outros com nada, absolutamente nada! Dói em quem carrega traços de humanidade que resistem à desumanização diária. Onde estão os dias melhores idealizados por ti? Infelizmente, não conseguimos alcançá-los. E não temos perspectiva, por ora. Por muito tempo, talvez. Só restam dúvidas.

Ah, você disse que a barbárie, vista de 1988, continuava crescendo, mas não era mais possível ver o seu elogio. Pois, hoje, é possível. É tragicamente possível. O elogio à barbárie está nas redes sociais, nas bocas, nos corações repletos de amargura e ódio, nas alusões a armas de fogo e nas brincadeiras violentas; está no minimizar a dor do outro, as tristezas, os medos; está na voz de um presidente que diz, veja bem o que ele diz, que o fuzil é mais importante do que o feijão. Comeremos bala quando a fome bater? Ou usaremos a bala para fugir definitivamente dela? Eu ainda não sei, mas não demoraremos muito a descobrir.

Sobre a literatura, nosso direito também é restrito. Muitas vezes, é inviável porque o nosso povo tem que optar pelo arroz, pelo feijão, pela carne ou até mesmo pela gasolina e pela luz. Os dias não estão nada fáceis. O ministro da Economia disse, em uma fala maldita, que só os ricos leem e, por isso, os livros poderiam ser taxados. Como os pobres podem ler, então, se não têm esse direito? A ignorância dessa gente é tão grande. Eles, sim, são os verdadeiros pobres: de alma, de intelecto, de coração, de humanidade. Tenho certeza de que Carolina Maria de Jesus concordaria comigo. Ela sabia das coisas.

Daqui, de 2021, o cenário é feio. É triste. Cruel. Absurdo. Violento. Inacreditável. Eu já disse triste? Pois é, desculpe ser repetitiva. É que a tristeza me acompanha todos os dias. Senta à mesa, ao meu lado; me observa enquanto durmo e tento fugir da realidade. Divide as horas de sol e de chuva comigo. Ela também está aqui, agora, enquanto os dedos, agitados, trabalham em uma valsa sombria para tentar traduzir esse mundo ininteligível. Será que seremos capazes de compreender tudo isso um dia?

A luta, meu caro mestre, ao contrário do que você esperava, está cada vez menos esperançosa.


"O direito à literatura" foi escrito em 1988 e publicado no livro "Vários Escritos", de Antonio Candido. 

 

Soul — Em busca de sentido

 

Soul/ Divulgação


Quem somos e o que queremos ser? Estas são duas das inúmeras perguntas que permeiam todo o roteiro do filme Soul, uma das mais recentes produções dos estúdios Disney e Pixar. Vencedor das categorias de Melhor Filme de Animação e Melhor Trilha Sonora do Globo de Ouro 2021, o longa-metragem, dirigido por Pete Docter e Kemp Powers, mescla arte, sensibilidade, questões existenciais e doses de inocência na busca por um suposto sentido para a vida.

Após sucessivos fracassos em sua carreira e pressionado por sua mãe para continuar a dar aulas de música para o ensino médio, o pianista Joe Gardner (dublado por Jamie Foxx) consegue a oportunidade de sua vida ao ser convidado para participar do quarteto de Dorothea Williams (Angela Basset), um dos grandes nomes do jazz do cenário de Nova York. Depois de ser aprovado em um teste, ele sofre um acidente que resultado na ida de sua alma para uma nova dimensão.

Ao perceber a realidade, Joe tenta retornar à vida na Terra, mas é lançado para outro local: a Escola Pré-Vida, por onde passam as almas em processo de formação de personalidade. Entre elas, está 22 (Tina Fey), uma alma que não aceita a ideia de reviver e tenta escapar do ciclo morte-vida para permanecer em uma dimensão além da matéria. Por determinação dos seres responsáveis pelas pequenas almas, Joe, por engano, é nomeado o mentor de 22 e deve prepará-la para uma nova jornada, ajudando-a a encontrar o que a deixará pronta para o recomeço.

Apesar de destinado ao público infantil, o filme, assim como outras produções da Pixar e da Disney dos últimos anos, é uma boa opção para jovens e adultos. Tendo como fio condutor provocações e questionamentos acerca da existência, Soul, também marcado pelas composições do pianista Jon Batiste, proporciona momentos de diversão e reflexão a partir da trajetória de personagens bem construídos e de um roteiro que mostra, de maneira bela e delicada, a forma como o medo, a insegurança e o outro, ainda que nos seja caro, podem impactar as nossas escolhas.  


Sobre o filme:

Onde assistir? Disney +

Ano de produção: 2020

Segunda Chamada — O Brasil na arte e na vida

Elenco de Segunda Chamada/ TV Globo


Os desafios do ensino público para jovens e adultos somados aos dramas pessoais de professores e alunos: esta é a combinação que faz da série Segunda Chamada um dos grandes atrativos da televisão brasileira. Estrelada por nomes conhecidos, como os atores Debora Bloch, Paulo Gorgulho e Sílvio Guindane, a produção traz reflexões sobre o sistema educacional do Brasil e o quanto este pode impactar a vida de estudantes de periferia de todas as idades.

A série, escrita por Carla Faour e Julia Spadaccini, narra a trajetória dos alunos e docentes da Escola Estadual Carolina Maria de Jesus, homenagem apropriada à história de vida da escritora mineira, que batiza a unidade escolar localizada em uma comunidade na cidade de São Paulo. O primeiro episódio marca o retorno da professora Lúcia ao trabalho após um período de afastamento devido à morte trágica de seu filho, em um acidente na porta da instituição de ensino. O rapaz era aluno e, depois de uma briga com um professor e a mãe, foi vítima de um atropelamento.

Simultaneamente à história de Lúcia, o espectador acompanha as dificuldades do corpo docente para manter o ritmo em meio a parcas condições de infraestrutura e os dramas cotidianos dos professores Marco André, Eliete, Jaci e Sônia, que, enquanto buscam resolver suas próprias questões, se veem envolvidos em diversos episódios, igualmente dramáticos, da vida de seus alunos. Entre eles, estão Natasha, uma travesti que luta para ser respeitada socialmente; Jurema, uma idosa que, depois dos 70 anos, enfrenta o marido e volta para a escola; e Sílvio, um morador de rua que é considerado o mais brilhante aluno de matemática e sofre preconceito dos próprios colegas. 

Sempre um dos principais pontos de discussão em todo o Brasil, a educação é a grande protagonista da série. Por meio da rotina na Escola Carolina Maria de Jesus, parte dos jovens e idosos percebe que, a partir do conhecimento e das oportunidades que este traz, é possível transcender a realidade imposta às suas vidas. Por outro lado, há os que tentam se adequar à escola, mas não conseguem e buscam opções mais “fáceis”, não sem mágoa e revolta pelas promessas não concretizadas de um novo futuro e pelo “tempo perdido” nas cadeiras e bancos escolares.

Ainda que deixe fios soltos para conclusões em uma próxima temporada, Segunda Chamada teve as gravações suspensas e não tem previsão para lançamento de novos episódios, o que não impede a compreensão da narrativa e da arte em mais uma imitação da vida real. 

Sobre a série:

Onde assistir? Globoplay Temporada: 1 Episódios: 11 Ano de produção: 2019


Caso do Bar Bodega: os deslizes do jornalismo

Diariamente, fatos relacionados a crimes são amplamente noticiados em veículos de comunicação, sejam televisivos, radiofônicos, impressos ou online. Grande parte das matérias se refere à editoria de polícia, conforme intitulam os jornalistas. No entanto, apesar da suposta facilidade na apuração desse tipo de notícia, muitos erros (que deveriam ser punidos devido à extensão do prejuízo) dos jornais brasileiros podem ser encontrados nessas histórias, nas quais bandidos e policiais são as principais atrações.
A ausência de apuração mais cuidadosa e aprofundada, vinculada ao pouco tempo dedicado a cada pauta, leva a imprensa a falhas grotescas e, muitas vezes, irreversíveis para as vítimas do “quarto poder”. Livros de jornalistas que se entregaram a um exercício de distanciamento para análise mais imparcial sobre a profissão possibilitam às novas gerações o conhecimento acerca das leviandades cometidas outrora.
Um dos repórteres que trabalhou para reverter crimes de informação cometidos pela imprensa é Carlos Dorneles. Jornalista da TV Globo, Dorneles dedicou-se a buscar os fatos sobre o crime do Bar Bodega, em São Paulo, na década de 90. O autor do livro Bar Bodega – um crime de imprensa, lançado em 2007, revirou os materiais jornalísticos produzidos e publicados na época, teve acesso aos inquéritos e apresentou aos brasileiros a verdadeira história da noite em que foram assassinados dois jovens de classe média no estabelecimento, que pertencia aos atores Luiz Gustavo, Cássio e Tato Gabus Mendes.
Na época, a Polícia Civil do Estado de São Paulo acusou erroneamente um menor de idade, chamado Cléverson, de ser o líder do bando que matou um dentista e uma estudante no bar. Após roubarem, os cinco bandidos (incluindo uma mulher, responsável por dar cobertura dentro de um táxi dirigido por ela) fugiram. Antes da partida, no entanto, um deles se envolveu em uma discussão com o dentista, de 26 anos, e o agrediu e matou. Do lado de fora do Bodega, outro assaltante atirou em direção à janela. A bala atingiu a estudante de odontologia, de 23 anos.
A classe média paulistana e a imprensa, revoltadas com o crime, fizeram pressão na polícia para que o caso fosse imediatamente solucionado. Diante da dificuldade de encontrar os assaltantes, agentes incriminaram o adolescente Cléverson que, à época, tinha 17 anos. Ele havia sido apreendido por assalto, dias depois do caso Bodega, e foi confundido por um policial. O menor, ao afirmar que não conhecia o bar e não sabia das mortes, foi brutalmente agredido e torturado pelos militares e civis, sedentos pela confissão do suposto assassino.
À medida que era violentado, Cléverson citou nomes de colegas e conhecidos do bairro onde morava, em São Paulo. Valmir da Silva, Valmir Martins, Luciano, Natal, Jailson, Benedito, Marcelo Nunes e Marcelo da Silva foram detidos após terem sido apontados pelo adolescente. No entanto, nenhum dos jovens tinha participação no crime do Bar Bodega. Enquanto os meninos tentavam se defender, eram cruelmente torturados pela polícia, que coagia o grupo a dar detalhes do caso.
A cada novidade, a imprensa, acrítica e despreparada para noticiar o caso, comparecia em massa para apresentar, posteriormente, à sociedade o resultado das investigações da polícia. Com manchetes sensacionalistas, matérias televisivas e radiofônicas exageradas, aliadas a perguntas para pressionar os detidos e apoio ao ideologicamente frágil movimento Reage São Paulo, o jornalismo brasileiro cometeu um dos mais grotescos erros registrados na história recente da imprensa: acusou, sem provas concretas, e com base apenas na versão da polícia, nove pessoas inocentes, cujas vidas foram seriamente prejudicadas pela cobertura midiática equivocada.
Após a reviravolta do caso, provocada pelo promotor Eduardo Araújo da Silva, o desfecho do caso do Bar Bodega foi mudado. Os verdadeiros assaltantes foram presos e os registros da imprensa, encerrados. No entanto, as consequências da acusação, causadas principalmente pelo jornalismo, foram imutáveis. Situação semelhante ocorreu no caso Escola Base, também nos anos 90, no qual pais de alunos, o motorista de uma Kombi, donos de um colégio infantil e uma sócia, todos de São Paulo, foram erroneamente acusados de abuso sexual – erro este reforçado pela imprensa do país.
Carlos Dorneles volta a buscar os meninos apontados como assassinos depois de 10 anos do fim das investigações. Os relatos resultaram na segunda parte de Bar Bodega – um crime de imprensa. Falta de oportunidades, discriminação, dificuldade financeira devido ao preconceito e as mudanças causadas na família devido à sucessão de erros da polícia de São Paulo e da imprensa são apresentadas no livro.
Apesar de bons elementos para ampliar as histórias dos nove suspeitos, o jornalista perdeu a chance de uma abordagem mais profunda da situação em que viviam os homens no ano de 2006. Apenas a vida do protagonista Cléverson é detalhada no trecho, tornando secundários os demais dramas vividos pelos outros oito rapazes e deixando soltos importantes detalhes que poderiam compor a maior obra jornalística sobre o crime cometido pela imprensa e pela polícia no caso do Bar Bodega.

À música brasileira

Tom Jobim, Vinícius de Moraes e Chico Buarque

Em uma entrevista, o cantor, compositor e escritor Chico Buarque afirmou que a música "Every time we say goodbye", de Cole Porter, é a mais bonita do mundo. Com declarada e franca ousadia, eu discordo. Para mim, mera admiradora de acordes e canções, a música brasileira é a mais bonita do mundo. Não há, pelo planeta, composições que tenham me arrebatado mais do que as da terra do pau-brasil.

Cresci ouvindo Chico, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Elis Regina, Cazuza, Rita Lee, Tom Jobim, Vinícius de Moraes e outros grandes nomes do cenário brasileiro. Enquanto minha mãe limpava a casa ou cozinhava, lá estava o rádio, ecoando belas vozes e composições que já perturbavam a pequena e gordinha criança que fui.

Desde menininha, sei que têm dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu e que, a qualquer momento, uma roda viva pode carregar o destino para lá, trazendo reviravoltas. Apesar disso, sempre mantive os olhos cheios de cores e o peito cheio de amores (muitos vãos, outros não). Todas as fases da minha vida estão entrelaçadas a diversas canções. A adolescência, em grande parte, foi embalada por rock. No entanto, o ritmo sempre ficava em segundo plano. Minhas buscas eram por letras que fizessem sentido para o momento em que eu vivia. Novamente, então, deparei-me com a música brasileira. Entre as bossas e fossas, redescobri Chico, que caminha junto a mim desde o final da fase mais rebelde.

Suas canções me trouxeram experiências que nunca havia tido a oportunidade de vivenciar. E essas experiências aconteciam (e continuam a acontecer) em meu interior. Com fones no ouvido e olhar perdido e vago, meu silencioso coração era mexido e remexido pelas letras, assim como meus pensamentos, unindo os pedaços de mim. Por meio do carioca, comecei a conhecer ainda mais outros artistas.

Ouvia canções nas vozes de diversos músicos do país. Elas pareciam sob medida para mim, que passei a observar melhor o mundo ao meu redor e perceber que, às vezes, tudo é lindo e, às vezes, tudo engana. Entre confrontos e conflitos, refugiava-me na música brasileira. Compreendi, graças a Belchior e Elis, que, apesar das desavenças, sempre seremos os mesmos e viveremos como nossos pais, por mais que queiramos ir contra eles. No fim, somos todos iguais nesta e em outras noites.

Tom e Vinícius me trouxeram a alma do Rio de Janeiro sem que eu precisasse sair de casa. Ipanema, transfigurada em sua garota, tornou-se velha amiga. Mas, apesar de existirem sol e alegria, há, também, tempestade. Afinal, a felicidade é como a pluma que o vento vai levando pelo ar. Voa tão leve, mas tem a vida breve. Precisa que haja vento sem parar. E é o mesmo Vinícius, capitão do mato, poeta e diplomata, o branco mais preto do Brasil da linha direta de Xangô – junto a Baden Powell –, quem reacende diariamente as esperanças em meu peito por me deixar saber que não há necessidade de chorar nem de sofrer, pois há sempre um novo amor em cada novo amanhecer.

O amargo gosto da guerra

Hamilton cobriu a Guerra do Vietnã durante 40 dias

Em 1968, o repórter José Hamilton Ribeiro foi escalado para cobrir a Guerra do Vietnã pela revista Realidade. Nenhum correspondente brasileiro havia ido até o país, e Hamilton aceitou o convite feito pelo veículo de comunicação. Batalhou para conseguir o visto e instalou-se, inicialmente, em Saigon, capital do Vietnã do Sul, poucos dias depois da ofensiva do Tet, que deixou arrasada a cidade.

Hamilton foi enviado para cobrir 40 dias da guerra, mas, convidado pelo fotógrafo Shimamoto a ficar mais um dia, permaneceu para acompanhar uma missão das tropas americanas na Estrada Sem Alegria. A ida trouxe uma grande consequência para o jornalista: a perda da perna esquerda. O acidente o levou a questionar diversos assuntos, incluindo a profissão, durante o tempo em que ficou internado. Em contrapartida, o repórter de guerra é, ainda hoje, considerado um dos maiores profissionais da imprensa brasileira. Suas experiências culminaram no livro O Gosto da Guerra, relançado em 2005 pela editora Objetiva.

Durante sua estada no Vietnã do Sul, Hamilton apresentou detalhes do comportamento dos soldados americanos, analisados por ele nos quarenta dias em que ficou hospedado nos quartéis dos estadunidenses e foi, por eles, escoltado em missões e investidas contra os vietcongues. Cumprindo a regra jornalística que determina a necessidade de escutar os dois lados para a produção de uma reportagem, ele tentou ir ao Vietnã do Norte, mas a viagem foi impossibilitada porque lhe foi negado o visto. Nas memórias do repórter, entretanto, são narradas histórias relacionadas à ocasião e ao rápido encontro do homem com um vietcongue.

As narrativas da guerra oferecem um panorama sobre o conflito que se estendeu de 1955 a 1975 e, também, sobre a cultura e costumes locais. A luta das mulheres ao lado dos vietcongues e da Frente Nacional para a Libertação (FNL), visando combater os inimigos e a opressão a que eram submetidas, e os ritos religiosos como forma de se aproximar das divindades e obter os pedidos desejados (apresentados a partir do excelente exercício de estranhamento, possibilitado pelo distanciamento natural, feito pelo autor) são alguns pontos abordados por Hamilton, entre as recordações de sua passagem pelos hospitais do Vietnã.

Táticas e atos militares dos Estados Unidos, morte indiscriminada de habitantes das regiões durante os confrontos, o papel dos americanos na derrota de seu país, vinculados à comprometida busca pela informação, levam o leitor a uma ampla compreensão acerca da Guerra do Vietnã, sob o ponto de vista de Hamilton, que experimentou, segundo suas próprias palavras, o amargo gosto da guerra. 

Mais do mesmo


Simplesmente Acontece – Quem aprecia cinema sabe que, em larga escala, as histórias produzidas atualmente visam o lucro. Para alcançá-lo, a equipe se adéqua apenas às exigências do mercado e elabora longas-metragens conhecidas como blockbusters, que, fatalmente, atrairão grande quantidade de pessoas para as salas espalhadas pelo mundo. Não há preocupação em cumprir um dos maiores papéis da arte: envolver o espectador a ponto de produzir reflexões e discussões a partir do que é mostrado, como ocorre tanto em filmes estrangeiros — Efeito Borboleta (2004), de Eric Bress e J. Mackye Gruber — quanto em brasileiros — Solidões (2013), de Oswaldo Montenegro.

No entanto, a relação esperada entre arte e público não é uma das preocupações presentes em “Simplesmente acontece”, dirigido por Christian Ditter. O roteiro, adaptado do livro homônimo de Cecelia Ahern, abusa das fórmulas repetitivas e enjoativas sobre o final da adolescência e novas experiências de personagens entre 18 e 30 anos, sempre focando em desencontros amorosos. Não há novidades no enredo que possam ser aproveitadas e extraídas da história sem temperos e maiores atrativos, podendo levar o espectador ao tédio com apenas vinte minutos de filme.

A história se passa na Inglaterra e nos Estados Unidos. Dois jovens, Rosie (Lily Collins) e Alex (Sam Claflin) são alunos da mesma escola. Os personagens, adolescentes no começo da história, são amigos desde a infância. Mas, como esperado em filmes de comédia romântica, ambos nutrem sentimentos até então impossíveis de serem concretizados. Ela namora outros rapazes, assim como ele mantém relacionamentos com outras meninas, e nenhum dos dois deseja ceder ao romance, sendo este o atrativo para os admiradores do gênero.

Ambos querem sair da Europa para a América do Norte com o objetivo de estudar. Ela visa a Universidade de Boston e ele, Harvard. Ao ser aprovada na instituição, Rosie descobre que está grávida e abre mão do seu sonho de cursar Hotelaria. Alex, sem saber da situação da amiga, parte para outro continente e promete esperá-la. A garota, então, dedica-se à filha Katie. Mas o amor platônico pelo rapaz não é esquecido, e eles continuam a se corresponder periodicamente. O desenrolar da história, como anseiam os espectadores envolvidos com o sonhado namoro dos personagens — tática usada por escritores, roteiristas e demais criadores para manter o público preso à narrativa — culmina no esperado fim para os longas-metragens do estilo.

Ao longo do filme, determinadas sequências indicam outros possíveis caminhos mais interessantes para a história, como as consequências da morte do pai da protagonista e o impacto da gravidez na vida da jovem, que troca os estudos pelo papel de mãe em tempo de integral.

Uma dessas cenas mostra o diálogo entre os personagens, no qual Rosie explica a Alex o motivo de não ter contado sobre o nascimento de sua filha. A protagonista diz ao amigo que esta seria a única forma de alguém continuar a vê-la como Rosie, e não como uma estranha. A conversa demonstra a dificuldade de amadurecimento da mulher, que não consegue se enxergar, agora, como adulta e gostaria de manter, por meio do amigo, um vínculo com o passado, representando o sentimento de meninas despreparadas para a maternidade.

A despeito da existência de outras perspectivas para a história, o roteiro de Juliette Towhidi deságua no previsível (o amor mal resolvido do casal) e afunda na entediante mesmice, indo de encontro às possibilidades narrativas que poderiam ser exploradas para melhor aproveitamento do filme.


Publicado na coluna Bagdá Café, do jornal Folha da Manhã, e no Blog Opiniões no dia 18 de março.