Daqui, a desesperança

9/02/2021 2 Comments

 

Foto: Mary Lafer
A Antonio Candido, reflexões sobre direitos à vida e à arte.


 

Caro mestre, seguimos na luta.

Desesperançados, ao contrário do que você supôs em 1988, ano do renascimento das esperanças. Daqui, de 2021, a realidade é tão oposta e monstruosa que você não acreditaria neste retrocesso. Nem nós, para falar a verdade. Lá no ano da promulgação da Constituição, você imaginou que, apesar do trágico cenário de um Brasil recém-saído da ditadura, os anos vindouros seriam melhores; que haveria motivos para lutar; que as desigualdades estariam menos desiguais e as injustiças sociais, menos injustas. Nada, mestre. Estamos cada vez mais distantes disso.

Todos os dias, leio as notícias sobre o seu João, que não consegue mais o sustento para a família e está desesperado. Ou sobre a dona Ana, que morreu à espera de uma UTI para Covid (pois é, para piorar o nosso percurso, estamos sangrando diariamente em uma pandemia longe, bem longe de ser controlada) porque não tinha dinheiro para pagar um hospital. Não tinha dinheiro, mas deveria ter direito. Também não tem.

Esbarro, nas redes sociais, com pedidos de doação para mães e pais cujos filhos passam fome ou estão doentes e morrendo à míngua. Eles pedem PIX. Sabe o que é PIX? É uma transação instantânea, feita por meio do celular, para transferência de dinheiro. É a mendicância virtualizada. E não falo isso em tom crítico, não. Falo em tom de desespero porque me sinto de pés e mãos atados quando vejo algo assim. Embrulha o estômago e faz o sangue ferver. Uns com tanto e outros com nada, absolutamente nada! Dói em quem carrega traços de humanidade que resistem à desumanização diária. Onde estão os dias melhores idealizados por ti? Infelizmente, não conseguimos alcançá-los. E não temos perspectiva, por ora. Por muito tempo, talvez. Só restam dúvidas.

Ah, você disse que a barbárie, vista de 1988, continuava crescendo, mas não era mais possível ver o seu elogio. Pois, hoje, é possível. É tragicamente possível. O elogio à barbárie está nas redes sociais, nas bocas, nos corações repletos de amargura e ódio, nas alusões a armas de fogo e nas brincadeiras violentas; está no minimizar a dor do outro, as tristezas, os medos; está na voz de um presidente que diz, veja bem o que ele diz, que o fuzil é mais importante do que o feijão. Comeremos bala quando a fome bater? Ou usaremos a bala para fugir definitivamente dela? Eu ainda não sei, mas não demoraremos muito a descobrir.

Sobre a literatura, nosso direito também é restrito. Muitas vezes, é inviável porque o nosso povo tem que optar pelo arroz, pelo feijão, pela carne ou até mesmo pela gasolina e pela luz. Os dias não estão nada fáceis. O ministro da Economia disse, em uma fala maldita, que só os ricos leem e, por isso, os livros poderiam ser taxados. Como os pobres podem ler, então, se não têm esse direito? A ignorância dessa gente é tão grande. Eles, sim, são os verdadeiros pobres: de alma, de intelecto, de coração, de humanidade. Tenho certeza de que Carolina Maria de Jesus concordaria comigo. Ela sabia das coisas.

Daqui, de 2021, o cenário é feio. É triste. Cruel. Absurdo. Violento. Inacreditável. Eu já disse triste? Pois é, desculpe ser repetitiva. É que a tristeza me acompanha todos os dias. Senta à mesa, ao meu lado; me observa enquanto durmo e tento fugir da realidade. Divide as horas de sol e de chuva comigo. Ela também está aqui, agora, enquanto os dedos, agitados, trabalham em uma valsa sombria para tentar traduzir esse mundo ininteligível. Será que seremos capazes de compreender tudo isso um dia?

A luta, meu caro mestre, ao contrário do que você esperava, está cada vez menos esperançosa.


"O direito à literatura" foi escrito em 1988 e publicado no livro "Vários Escritos", de Antonio Candido. 

 

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Soul — Em busca de sentido

3/01/2021 0 Comments

 

Soul/ Divulgação


Quem somos e o que queremos ser? Estas são duas das inúmeras perguntas que permeiam todo o roteiro do filme Soul, uma das mais recentes produções dos estúdios Disney e Pixar. Vencedor das categorias de Melhor Filme de Animação e Melhor Trilha Sonora do Globo de Ouro 2021, o longa-metragem, dirigido por Pete Docter e Kemp Powers, mescla arte, sensibilidade, questões existenciais e doses de inocência na busca por um suposto sentido para a vida.

Após sucessivos fracassos em sua carreira e pressionado por sua mãe para continuar a dar aulas de música para o ensino médio, o pianista Joe Gardner (dublado por Jamie Foxx) consegue a oportunidade de sua vida ao ser convidado para participar do quarteto de Dorothea Williams (Angela Basset), um dos grandes nomes do jazz do cenário de Nova York. Depois de ser aprovado em um teste, ele sofre um acidente que resultado na ida de sua alma para uma nova dimensão.

Ao perceber a realidade, Joe tenta retornar à vida na Terra, mas é lançado para outro local: a Escola Pré-Vida, por onde passam as almas em processo de formação de personalidade. Entre elas, está 22 (Tina Fey), uma alma que não aceita a ideia de reviver e tenta escapar do ciclo morte-vida para permanecer em uma dimensão além da matéria. Por determinação dos seres responsáveis pelas pequenas almas, Joe, por engano, é nomeado o mentor de 22 e deve prepará-la para uma nova jornada, ajudando-a a encontrar o que a deixará pronta para o recomeço.

Apesar de destinado ao público infantil, o filme, assim como outras produções da Pixar e da Disney dos últimos anos, é uma boa opção para jovens e adultos. Tendo como fio condutor provocações e questionamentos acerca da existência, Soul, também marcado pelas composições do pianista Jon Batiste, proporciona momentos de diversão e reflexão a partir da trajetória de personagens bem construídos e de um roteiro que mostra, de maneira bela e delicada, a forma como o medo, a insegurança e o outro, ainda que nos seja caro, podem impactar as nossas escolhas.  


Sobre o filme:

Onde assistir? Disney +

Ano de produção: 2020

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Segunda Chamada — O Brasil na arte e na vida

2/23/2021 0 Comments

Elenco de Segunda Chamada/ TV Globo


Os desafios do ensino público para jovens e adultos somados aos dramas pessoais de professores e alunos: esta é a combinação que faz da série Segunda Chamada um dos grandes atrativos da televisão brasileira. Estrelada por nomes conhecidos, como os atores Debora Bloch, Paulo Gorgulho e Sílvio Guindane, a produção traz reflexões sobre o sistema educacional do Brasil e o quanto este pode impactar a vida de estudantes de periferia de todas as idades.

A série, escrita por Carla Faour e Julia Spadaccini, narra a trajetória dos alunos e docentes da Escola Estadual Carolina Maria de Jesus, homenagem apropriada à história de vida da escritora mineira, que batiza a unidade escolar localizada em uma comunidade na cidade de São Paulo. O primeiro episódio marca o retorno da professora Lúcia ao trabalho após um período de afastamento devido à morte trágica de seu filho, em um acidente na porta da instituição de ensino. O rapaz era aluno e, depois de uma briga com um professor e a mãe, foi vítima de um atropelamento.

Simultaneamente à história de Lúcia, o espectador acompanha as dificuldades do corpo docente para manter o ritmo em meio a parcas condições de infraestrutura e os dramas cotidianos dos professores Marco André, Eliete, Jaci e Sônia, que, enquanto buscam resolver suas próprias questões, se veem envolvidos em diversos episódios, igualmente dramáticos, da vida de seus alunos. Entre eles, estão Natasha, uma travesti que luta para ser respeitada socialmente; Jurema, uma idosa que, depois dos 70 anos, enfrenta o marido e volta para a escola; e Sílvio, um morador de rua que é considerado o mais brilhante aluno de matemática e sofre preconceito dos próprios colegas. 

Sempre um dos principais pontos de discussão em todo o Brasil, a educação é a grande protagonista da série. Por meio da rotina na Escola Carolina Maria de Jesus, parte dos jovens e idosos percebe que, a partir do conhecimento e das oportunidades que este traz, é possível transcender a realidade imposta às suas vidas. Por outro lado, há os que tentam se adequar à escola, mas não conseguem e buscam opções mais “fáceis”, não sem mágoa e revolta pelas promessas não concretizadas de um novo futuro e pelo “tempo perdido” nas cadeiras e bancos escolares.

Ainda que deixe fios soltos para conclusões em uma próxima temporada, Segunda Chamada teve as gravações suspensas e não tem previsão para lançamento de novos episódios, o que não impede a compreensão da narrativa e da arte em mais uma imitação da vida real. 

Sobre a série:

Onde assistir? Globoplay Temporada: 1 Episódios: 11 Ano de produção: 2019


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