Seu Francisco

2/26/2015 5 Comments

Chico Buarque

Francisco Buarque de Hollanda. 70 anos. Chico. Conhecido pelos belos olhos azuis e palavras poéticas e certeiras com que descreve o mundo. Buarque. Compositor, escritor, autor de peças de teatro, cantor. Conhecedor da alma humana. Homem que, sem dúvidas, carrega a essência da mulher. Interpreta-a e descreve-a com precisão ímpar. Entendedor do lado humano romântico e, também, sombrio.

Político, amante, cronista, trovador, malandro. Paris, Itália, Budapeste, Rio de Janeiro. Outrora, Julinho da Adelaide para se esquivar da acirrada marcação dos censores do período militar. Contornou-os e deu aos brasileiros grandes canções que, ainda hoje, são tocadas em fones de ouvido e caixas de som. Continua a encantar jovens e velhos. Tímido. Durante anos de sua carreira, recusava-se a subir aos palcos sem a presença dos músicos do grupo MPB-4. Noutros tempos, não aceitava se apresentar sem cigarros e bebidas. Acostumou-se, mas raras vezes sai de seu silêncio para breves contatos com o mundo e os fãs. 

Chico, com o seu brilhante talento para juntar palavras e enternecer corações, é um dos mais completos artistas brasileiros. Em suas músicas, ele narra vidas de pessoas comuns. Suas letras, lidas e sentidas enquanto vivemos o momento presente, terão outro significado trazido pelo amanhã e suas novas circunstâncias. Profundo e engajado, o músico alcança todos os brasileiros e representa, por meio de sua obra, os mais nobres e pobres sentimentos devido a sua aguçada sensibilidade para olhar, ouvir e interpretar o mundo ao redor. 

De "Eu te amo", hino dos apaixonados, a "Meu caro amigo", que conta o drama dos exilados, Buarque abriga diferentes realidades em sua arte e as mostra aos seus fãs. Envolve-os. Leva-os a sentir intensamente. A súbita partida de Stuart Angel e a dor de sua mãe Zuzu, transformada em Angélica, sufoca o ouvinte impotente diante da angústia da busca pelo filho. Aprendemos que, apesar de você, amanhã há de ser outro dia. E Lily Braun mostra que amores podem se transformar em prisões.

Em "Gota d'água", o coração, que precisa ser deixado em paz por ter se tornado um pote de mágoas, é alvo de sofrimento. Em cena, na primeira montagem, Bibi Ferreira traz à vida Joana, abandonada pelo marido Jasão após 10 anos de união. "Antes de Joana, ele era a merda em negativo". Interessado apenas em ganhar dinheiro com seu samba, Jasão larga a esposa e a troca por Alma, cujo pai é grande incentivador de sua carreira. Amargura, vingança, ódio e veneno permeiam a obra. 

Ele também faz cinema e pode ser mil, mas não existe outro igual. Benjamim e Budapeste, duas de suas obras literárias, foram transformados em filmes pelas mãos dos diretores Monique Gardenberg e Walter Carvalho, respectivamente. Ambos brilhantes, tais quais o autor. Vagam entre dúvidas, covardia, abandono e o insuportável peso da vida. 

Por meio do olhar buarqueano, vemos o mundo apresentado e representado nas diferentes formas de arte. Cinema, música, literatura e teatro reunidos em um homem. Sentimos, entendemos sentimentos e compreendemos verdades indubitáveis. Buarque não envelhece. Ele se renova a cada letra minuciosamente elaborada, a cada obra publicada. Chico é indispensável e recomendado em doses excessivas para todos os momentos, haja o que houver. Palavra de mulher

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O escritor e a ficção

2/26/2015 0 Comments

"O autor não escreve para o público. Ele escreve para si."
O autor se transfigura e figura como Destino. Com “dê” maiúsculo. Personagem que ninguém vê ou ouve, mas que também está ali, presente nas narrativas. E, nesse momento, o escritor se torna parte de sua invenção. Escolhe os caminhos a partir do que gostaria de viver. Deixa as palavras fluírem por seus dedos, enquanto a emoção e a razão, cansadas da vida superficial e monótona, se unem e constroem uma história que, por vezes, o autor gostaria que fosse a sua.

Quantos personagens largaram suas vidas em busca de algo que julgaram que lhes fosse dar prazer? Quantos finais de possíveis tragédias deram lugar à felicidade, nunca imaginada por aqueles que acompanharam a obra? Quanta coragem carrega um ser humano na ficção? Faz-se isso, afinal, para alento de corações cansados de lutas inglórias. De causas vãs. De deixar para depois e perder. De não poder escolher livremente o caminho e se livrar de amarras invisíveis e devastadoras. Para trazer paz às mentes amedrontadas e frágeis, desestimuladas pela vida e suas implacáveis desventuras.

O autor não escreve para o público. Ele escreve para si. Para acalmar seus conflitos. Cria universos, pessoas, histórias, sentimentos e vidas para dar vazão a seus temores, angústias, medos. Desliza os dedos sobre os teclados para não se descontrolar e perder a razão em nome da emoção. Inventa para alimentar a sua alma, carente de novidades e de prazeres perdidos. Abre mão da racionalidade e se entrega à sensibilidade por meio de um mergulho na ficção para suprir o vazio causado pela não-ficção em que é obrigado a existir. Dá aos personagens rumos que não podem ser os de sua realidade.

O escritor, ao final de mais uma história, é forçado a retomar as demais atividades a que se dedica, deixando de lado o exercício de criação. Contudo, outras narrativas invadem a sua cabeça para lembrar-lhe que a vida no mundo real continua, mas a ficção estará ao seu lado, pronta para entrar em cena quando o cotidiano se tornar denso e mecânico. Quando a sensibilidade estiver prestes a escapar. A ficção diz, com cumplicidade característica, que estará pronta a abraçar o autor e oferecer-lhe outras vidas para cobrir os descaminhos de sua própria jornada.

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Impressões

2/26/2015 1 Comments

Liv Ullmann e Ingmar Bergman durante a gravação do filme "Persona"

Desde a infância, tenho hábito de ver filmes. Os de terror eram os meus favoritos. Quanto mais assustador, melhor. Após alguns anos, conheci um pouco mais e me rendi ao drama. Lembro que “Lado a Lado” foi o primeiro longa-metragem que me emocionou. A história e a forma como ela foi narrada e encenada me fizeram enxergar o lado mais humano da vida. A partir daquele momento, tornei-me mais sensível aos apelos emocionais.

Passado mais algum tempo, comecei a me afastar do cinema e de suas produções. Não havia nada que me atraísse, nada que parecesse valer a pena. Estava em busca de algo que ainda não havia encontrado, algo que me ajudaria a entender um pouco melhor o que se passava ao meu redor. Uma noite, em meio ao tédio cotidiano, encontrei um DVD em minha casa. O nome era “O Sétimo Selo”. Já havia escutado comentários sobre ele, sobre a profundidade com que o cineasta tratava certos aspectos da vida e resolvi assistir.

Ao término do filme, uma nova sensação tomou conta de mim. Eu acabara de conhecer uma das obras primas do sueco Ingmar Bergman, e ela havia me incomodado. O personagem principal, interpretado por Max Von Sydow, despertara algo em mim, algo que me trouxera uma sensação de identidade. Seus questionamentos, seus medos, suas angústias e sua busca vã por respostas, em certo ponto, eram também meus. Dentro de mim, havia acordado alguma coisa.

Imediatamente, comecei a buscar algumas informações sobre o diretor que parecia conhecer o interior de todo o ser humano. Decidi, então, ver outros de seus filmes. Em todos eles, as sensações de nudez e invasão eram constantes. “Persona” foi minha segunda escolha. Nele, Elizabeth era uma atriz que, de repente, escolhera o silêncio total. Dele, ninguém fazia parte. E ele não era compreendido pelos demais. O rompimento com o passado era ímpar e definitivo. Mesmo sem dizer uma palavra, a personagem falava o tempo todo. Ela usava seus olhos azuis para emitir todas as suas dores, angústias, temores e verdades relativas. Encantei-me de imediato com sua forma muda de gritar tudo o que sentia. Logo, descobri que a artista era a jovem (à época) norueguesa chamada Liv Ullmann.

Ullmann e Bergman, então, transformaram-se duas referências em minha vida. Minhas leituras giravam em torno de suas vidas e trabalhos. Após algum tempo sem assistir a outro filme no qual ambos trabalhavam, optei por “Gritos e Sussuros”. No começo, espantei-me com a atuação de Ingrid Thulin, uma atriz sueca, que dá vida a Karin. Durante os primeiros minutos, ela conta todo o seu sofrimento físico ao telespectador. Narra o que sente sem uma palavra. Suas fortes expressões possibilitam o entendimento e a consequente angústia do público ao sentir as suas dores. Nossos estômagos doem a cada vez que a mão da artista se posiciona sobre a barriga. O franzir de sua testa, transtornada pelos incômodos, faz com que cada pessoa siga o mesmo gestual. A verdade da dor irreal transmitida na ausência de som.

No decorrer da história, novamente vemos Liv Ullmann. Dessa vez, ela representa Maria, uma das irmãs da personagem que está no leito de morte. Mesmo em um papel secundário, Ullmann ganha força nas cenas em que aparece. No seu rosto, há algo de verdadeiro e doído. Há buscas. Ela tenta entender quais as circunstâncias a levaram a um distanciamento da outra irmã, Agnes (Harriet Andersson). Em um determinado trecho, as duas estão sentadas à mesa. Agnes transborda e fala a sua verdade para Maria, que escuta silenciosamente toda a raiva jogada sobre ela. Suas impressões sobre a conversa atingem o telespectador como um tiro. O olhar traz suas dúvidas e as lágrimas, sua incompreensão acerca dos caminhos tortos seguidos por ambas. Imediatamente, Ullmann se transforma em uma criança indefesa capaz de despertar um sentimento materno pleno em uma pedra. 

Depois de assistir a todas essas histórias, descobri um pouco mais de mim. Percebi que o cineasta sueco e a atriz norueguesa, de quem me tornara admiradora, sabiam mais de mim do que eu mesma. Eram invasivos, incômodos, profundos. Revelavam aspectos mais sombrios da alma. Entendiam meus silêncios e, se estivessem por perto, lidariam sabiamente com eles. A partir disso, concluí que arte é arte não apenas quando emociona o espectador, mas quando o transtorna a ponto de mudá-lo. E eu fui modificada. 

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