A arte de perder
Para sempre Alice — A fusão de
arte e vida, em que ambas são diariamente misturadas e se confundem, é uma
questão indiscutível. A temática do Mal de Alzheimer é um assunto
corriqueiramente abordado — tanto superficial quanto minuciosamente —, no
cinema, em filmes como A
Separação (2011),
de Asghar Farhadi, e Há
tanto tempo que te amo(2008), de Philippe Claudel; e na literatura, na obra O lugar
escuro, da jornalista Heloísa Seixas. Novamente o tema retorna às telas, no
filme Para sempre Alice, dirigido por Richard Glatzer e Wash
Westmoreland.
Baseado na obra de ficção homônima de Lisa Genova, Para
sempre Alice, por meio de cenas ricas que afloram perturbadores sentimentos
no público, mostra a realidade dos pacientes diagnosticados com mal de
Alzheimer — somente no Brasil, segundo dados da Associação Brasileira de
Alzheimer, há mais de 1,2 milhão de enfermos. Alice Howland, interpretada por
Julianne Moore, é uma renomada professora americana de Linguística, que leciona
na Universidade Columbia, conhecida pelas produções acadêmicas e incontestável
inteligência.
Os primeiros traços da doença aparecem suavemente durante o
jantar em comemoração ao aniversário da docente, no momento em que ela confunde
uma conversa sobre as filhas e se refere à irmã, morta na juventude. No
entanto, a confusão, como ocorre diariamente em quadros clínicos ainda não
diagnosticados, passa despercebida por todos os presentes.
O avanço do Alzheimer começa a ser notado pela mulher durante
uma palestra proferida na universidade, quando lhe falta uma palavra comumente
utilizada. A partir de então, Alice se perde, conforme ela própria afirma, e
seu lugar é tomado por uma mulher emocional, física e
mentalmente frágil e debilitada. À medida que a doença evolui rapidamente,
percebe-se ainda mais a semelhança com o cotidiano no qual vivem os enfermos.
Nesses momentos, o diálogo entre ficção e realidade se torna ainda mais nítido,
ao mostrar as degradações e perdas, tanto emocionais quanto físicas, trazidas
com a passagem do tempo.
Notando-se cada vez mais incapaz de exercer suas funções
cognitivas normais, Alice recorre a mecanismos eletrônicos e manuais que possam
ajudá-la a manter-se conectada ao mundo real e às suas memórias. Os dias de
linguista tornam-se tão nebulosos quanto as lembranças que
permearam seu cérebro por 50 anos, idade em que foi diagnosticada com mal de
Alzheimer.
Os danos causados são apresentados por meio de cenas turvas e
pouco nítidas, equivalentes à confusão mental da professora, fazendo o
espectador enxergar o mundo através dos olhos vagos de uma Alice abatida e
lívida, sem o ar sóbrio que lhe era característico. Em uma sequência, enquanto
a personagem caminha pela praia, a captação das imagens é feita em plano
aberto, colocando-a sozinha diante da areia e do mar. A sensação de vazio,
causada pela ausência de outros elementos cênicos, é a representação imagética
da situação da mulher, em que os detalhes mais íntimos desaparecem por completo
de sua memória, deixando-a órfã de si mesma e entregue à solidão absoluta.
Em um discurso proferido na Associação de Alzheimer, Alice
Howland traduz a percepção das pessoas enfermas acerca da nova realidade e,
também, o sentimento dos espectadores que acompanham, em aproximadamente 1h40
min, a curva descendente da vida da protagonista. Brilhantemente montado e
dirigido, o filme facilita a empatia entre o público e a personagem.
A temática, embora recorrente, é abordada com total
verossimilhança, e o longa-metragem destaca-se, sobretudo, pela atuação de
Julianne Moore, que incorpora plenamente a personagem após o diagnóstico de
Alzheimer da linguista. O papel rendeu à artista os merecidos prêmios de Melhor
Atriz do Oscar, do BAFTA e do Prêmio Critic’s Choice, e, também, de Melhor
Atriz em Filme de Drama do Globo de Ouro.
No decorrer do filme, a troca entre o público e a
protagonista é plena, fazendo doer em nós, sujeitos passivos e meros
receptores, todas as limitações e receios da mulher, visto que, dia a dia,
também deixamos para trás um pouco de nossa história.
Publicado na coluna Bagdá Café, no jornal Folha da Manhã, e no
Blog Opiniões, no dia 11 de março.
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